2 em 1: compre um look, ganhe um gatilho!
Como nossas escolhas de moda revelam mais do inconsciente do que qualquer sessão de análise
A real é que eu me visto como quem escreve um bilhete para estranhos sem assinatura. Cada peça diz algo que não tenho coragem de falar. Você também. (segundo meus amigos eu tenho um jeito bem peculiar de me vestir hahaha, pra nao falar estranho)
Quando me dei conta disso, confesso que senti um misto de desconforto e gargalhada involuntária (e uma tantinho de foda-se). Não daquela vergonha suave, mineira, que faz a gente abaixar os olhos. Mas daquela que pega no estômago e grita que até o que parece escolha é, no fundo, negociação com um inconsciente teimoso.
Bella Freud, (pra vc que estava em Nárnia até ontem, é a bisneta do Sigmund Freud, ninguém menos que o pai da psicanálise no qual eu homenageei no nome da minha Newsletter) pois bem, ela entendeu essa comédia humana antes de muitos de nós. Psicanalista renomada e não só por descendência, ela transformou o consultório em passarela e o contrário também. Fundou uma marca que virou confissão ambulante, basta olhar a camiseta Psychoanalysis ou o modelo 1970 vendido na Selfridges e (genialmente) lançou o podcast Fashion Neurosis para deixar explícito o striptease psíquico. As pessoas literalmente se deitam no divã para falar de roupas como quem narra sonhos (ainda não tem em português mas pra quem se interessar está no Apple Podcasts, Spotify e outras plataformas).
Ali não se vende look. Vende revelação.
É desconfortável. A gente adora falar de moda como tendência, consumo consciente, imagem profissional. Mas evita como praga o lado feio (até porque ele é bem feio e cabeludo). O motivo mesquinho. A insegurança que faz gastar o triplo naquela bolsa clássica só para ter ar de executiva séria. A rebeldia industrializada no coturno de marca (aquele Dr. Martens de R$3.157,00 dinheiros). Ou a camiseta básica tão branca, tão lisa, que parece pedir desculpa por existir (mas é Ricardo Almeida de algodão Pima, fio 140) .
Tive essa reviravolta na mente outro dia, de chinelo e vestido velho, enfiada num brechó chique em BH. Enquanto fuçava cabides, pensei que só estava consumindo de forma sustentável. Balela (hahahahhahaha pior que nem vocês eu engano mais). Estava comprando narrativa, um certificado de consciência para esfregar na cara de quem me acha consumista. Fiquei me sentindo meio impostora, meio marketeira de mim mesma. Saí sem nada, mas com umas boas anotações pro divã (Não o da Bella Freud, esse aqui, o nosso). E não adianta se enganar: consumo é confissão.
As teorias psicodinâmicas descrevem isso sem dó nem filtro. Desejo reprimido, compensação simbólica, projeção tornam-se os roteiristas dessa peça silenciosa. A gente compra para anestesiar o medo, para encenar quem queríamos ser, para gritar o que não conseguimos dizer. Um blazer estruturado cobre fragilidades; vira armadura (gente, falando nisso, descobri o @acervo28… se você for a louca do blazer nem vai, elas tem uma curadoria impecável). Um vestido delicado ensaia vulnerabilidade.
Quando alguém fala de neuromarketing, não se trata de papo de laboratório frio e sem poesia. Patrick Renvoisé e Christophe Morin explicam em “Neuromarketing: Understanding the Buy Buttons in Your Customer’s Brain” que mais de 90% das decisões de compra acontecem abaixo do radar da nossa consciência (isso mermo mermão, sem vc consentir), e marcas usam neuroimagem funcional para ver em tempo real o que acende na nossa amígdala, acionando medo de exclusão, desejo de pertencimento e ânsia por status (parece invasivo né? corre lá pra ler meu texto sobre ser consumidor ou cobaia, termina esse e vai lá!).
Em 2004, um estudo com o Baylor College of Medicine mostrou que apenas expor a marca Coca‑Cola ativa automaticamente áreas do cérebro ligadas a memórias e emoções positivas, chegando a mudar preferências em testes cegos. Achar que ali se vendia só refrigerante é subestimar o poder de um mito pessoal (tem coisas que só se resolve com uma coca gelada, quem concorda respira).
A Apple faz o mesmo com tecnologia. Steve Jobs entendeu tão bem o inconsciente coletivo que cada keynote virava rito de passagem. Martin Lindstrom, em “Buyology”, constatou que a maçã ativava centros cerebrais semelhantes aos ligados a devoção religiosa. Ritual, devoção, consumismo com batismo incluso. Esse é o nível (e eu odeio que funcione).
E quando se fala em branding, o cinismo fica elegante ( a estudante de branding dando um tiro no próprio pé). O branding é o psicanalista de luxo do capitalismo, escuta suas neuroses, embala em narrativa polida e devolve gritando quem você é (e o nosso papel é fazer com que você acredite que é mil vezes melhor do que era). A Nike não vende só tênis e sim vitória contra o medo. A Patagonia não pede só um casaco e sim absolvição ambiental. Em 2023, a Deloitte registrou que 57 % dos consumidores já mudaram seus hábitos multiplicando abraços verdes em marcas que oferecem redenção junto ao produto. Sustentabilidade virou novo confessional. Eu mesma me peguei pagando caro num brechó hypado, sentindo orgulho ecológico enquanto financiava a curadoria de uma loja que lucra com second hand gourmetizado (rindo de mim, confesso com um sorriso torto e sem filtro). O problema não é comprar. É comprar sem saber que é confissão.
A maior dor do consumidor moderno não é a fatura do cartão. É o vazio existencial que se tenta preencher com sacola. A ansiedade de não saber quem se é sem aquele look. O terror de parecer irrelevante. A carência de um rótulo para chamar de lar.
Bella Freud magnificamente deu voz a esse divã que muitos sabiam mas poucos tinham a ousadia de falar. E honestamente acho incrível que venha de uma pessoa com tanta propriedade no assunto. A gente vive esse podcast mudo todos os dias, no provador, ao abrir o armário, na selfie pronta para o feed (vou até abrir uma coquinha pra aguentar o restante dos tapas na cara que eu estou me dando nesse texto, tá doendo ai também?). E não estou fora dessa, enquanto escrevo, olho para vestidinho farm basiquinho, e percebo o truque de me vender como despretensiosa, mas é medo de parecer forçada. Pior é continuar usando (e ter um guarda roupa cheio deles).
É aí que a psicodinâmica do consumo ri da nossa cara (da minha e da sua). Achar que escolhemos racionalmente é acreditar em mágica de palco, preparada nos bastidores do cérebro por exércitos de growth marketers (somos fãs ou haters? hauhauahu). Lembra daquela urgência fabricada do “restam 2 unidades”? Booking.com levou advertência no Reino Unido por falsificar contagem regressiva, operação coreografada para acionar pânico de exclusão (se a moda pega no Brasil hein? hahaha tenho nem roupa pra isso).
O consumo é um show de marionetes invisíveis e saber quem puxa os fios muda toda a narrativa.
Se eu fizer um texto sem citar que somos marionetes do consumo pode duvidar da autoria, hahaha.
Meu convite é respirar fundo na próxima compra, pensar no recado que quer enviar (para você principalmente, depois para os outros e também para o mundo) e não para o vendedor (que só quer a comissão, honestamente). Vou começar por mim, na próxima vez em que eu me encontrar diante de prateleiras iluminadas pelo desejo alheio, vou perceber que cada peça carrega um fragmento de mim que nem eu mesma reconheço.
Aquela jaqueta encorpada murmurará sobre minhas defesas internas, costuradas com um fio de ansiedade; o vestido fluido sussurrará memórias de liberdade que ainda não vivi plenamente. Compramos não apenas roupas, mas pistas cifradas do nosso inconsciente, traduzidas em comprimentos de saia e texturas de couro. Entender isso é encarar o próprio espelho de uma forma quase cruel, mas necessária: vestir-se deixa de ser ato trivial e vira leitura de um mapa emocional.
Reconhecer que, por trás de um look “descolado” ou “clássico”, está a tentativa de preencher vazios que palavras não alcançam, faz com que o simples ato de provar uma peça no provador seja um exercício de autoanálise (faça com calma e carinho por você). É nesse silêncio que acontece o verdadeiro confronto que é saber que a economia do seu armário reflete uma economia de afeto, prestígio e pertencimento. Quando se compra com essa lucidez, a mercadoria deixa ser mercadoria e passa a ser espelho. A honestidade surge não de recusar a compra, mas de decifrar o que estou querendo dizer ao mundo em cada escolha de tecido, cor e formato. Essa leitura interna é o antídoto mais poderoso contra a ilusão de consumo.
Acho que de tudo que eu ja escrevi aqui na Freud e Fendi esse trecho acima é o que mais da sentido a tudo. No fim, mesmo eu sabendo de tudo isso, ainda vou desejar comprar (pq cês me conhecem mais que ninguém). E tudo bem. Contanto que eu saiba o que estou comprando de verdade.
Assinando por quem ainda ama uma liquidação, mas ama mais quando entende o truque.
Freud & Fendi por Camila Boaventura.